SOLIDÃO E PERIGO – Desempregada, mulher “constrói” casa na árvore em praça de Cuiabá – Veja
Sem ter onde morar após brigar com a mãe, Célia está morando há um mês na praça do Porto

“Meu sonho sempre foi ter uma casa de dois andares, e agora posso ter uma vista do alto”, conta Célia* (nome fictício), enquanto está sentada em um banco no térreo. A vista do alto que ela se refere é de sua casa que está construindo aos poucos. Há um mês, ela fez de uma árvore na Praça Major Bueno, no Bairro Porto, em Cuiabá, a sua morada.
A mulher, que completa 37 anos na semana que vem, está desempregada há 3 anos. Em seu último emprego, trabalhava como funcionária da indústria, mas também já foi costureira.
Na pandemia da Covid-19, chegou a receber o auxílio emergencial de R$ 600, que em seguida caiu para R$ 400. Porém, o auxílio foi cortado no ano passado. Desde então, Célia segue sem renda alguma. Antes, ela estava morando com a mãe no Bairro Pedra 90. Mas ela conta que houve uma briga e decidiu sair de casa. “Eu cheguei aqui porque… É uma longa história”, suspira antes de começar.
“Eu não queria ficar na casa de parente, porque é chato ficar encostado na casa de parente. Dormi no hotel, acho que foi mês passado. O hotel fica na parte de cima também, eu dormi na parte de cima”, conta, novamente demonstrando seu desejo de morar em um lugar alto.
Rodinei Crescêncio/RDNews
Foi então que ela decidiu resgatar um antigo sonho de infância e decidiu se mudar para uma árvore. “Me deu [essa ideia] na cabeça e eu já tinha lido uns livrinhos. Eu tinha vontade de plantar a minha árvore e fazer a minha casa na árvore, no meu terreno, não assim. Mas aí, de repente, falei: ‘faz uma casa na árvore, você não tem onde morar’”.
Com a roupa do corpo, uma mala e uma máquina de costura, ela escolheu a árvore, que fica próximo da Avenida Senador Metelo. A mulher estava de olho em outro tronco da praça, mas aquele lugar pegava o sol da tarde, além de ser mais “dificultoso” para construir. “Quero fazer uma casa de madeira que cabe três pessoas”, projeta.
Rodinei Crescêncio/RDNews
Célia detalha que monta o seu abrigo com coisas que acha na rua. “Eu pensei de enfeitar assim: colocar um lençol e o telhado fazer uma bandeira do Brasil, para ficar bonitinho, ficar tudo verdinho, não ficar chamando a atenção, bem reservado”.
Contudo, ela diz que não quer incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo, especialmente crianças. Além disso, Célia afirma que estudou as possibilidades antes de se mudar para uma árvore.
“Eu nem gosto de fazer isso, porque incentiva criança. É perigoso. Antes de fazer aquilo dali, eu já estudei sobre isso. É perigoso em tempo chuvoso, tem raio”, alerta. “O pessoal acha curioso, engraçado, mas é perigoso”, completa.
Ela também é ciente do perigo que envolve ser uma pessoa em situação de rua. Justamente por isso decidiu se mudar para o alto. Segundo conta, sua casa é “anti-visita”. “Lá em cima ninguém incomoda. Se vocês [a reportagem] chegassem e eu estivesse lá em cima, e eu não quisesse atender vocês, eu nem descia. Mesma coisa com o pessoal que vem aqui. Não caço conversa”.
Rodinei Crescêncio/RDNews
Célia também relata que seus parentes não sabem que ela está ali e que ela não cogita voltar para a casa da mãe. “Eu tenho vergonha do que eu disse, do que eu pensei, da forma como eu agi. Meu comportamento foi muito vergonhoso, eu tenho vergonha. Filho não tem o direito de fazer isso com a mãe, por mais que a mãe da gente não foi lá aquelas coisas. Mas a gente não pode dizer isso”.
Apesar de estar à mercê do sol, vento ou chuva, ela garante que morar na árvore é melhor do que na sua antiga casa de tijolos.
“Às vezes é bom as coisas difíceis acontecerem, para que a gente possa experimentar outras coisas também. A dificuldade vem, às vezes, para nos impulsionar para outra coisa. Eu não sabia que ia ficar 30 dias. É um pouco arriscado, perigoso, está aberto, eu sou mulher, estou sozinha, tem tudo isso. Mas em compensação, meu bem-estar melhorou um pouco”, reflete.
Cresce número de pessoas em situação de rua
Dados da Secretaria de Assistência Social, Direitos Humanos e da Pessoa com Deficiência, em conjunto com o Projeto Quero te Conhecer, apontam que em 2021, foram identificadas 96 pessoas em situação de rua em Cuiabá. Em 2019, existiam 212. Um novo mapeamento é traçado este ano.
No Brasil, a população em situação de rua cresceu cerca de 16% este ano. Levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre janeiro e maio, demonstra que mais de 26 mil novas pessoas foram registradas como em situação de rua, no CadÚnico, o cadastro do governo federal que dá acesso a benefícios sociais.
Pelo menos 26.447 pessoas foram morar nas ruas em 2022. Com isso, essa parcela da população saltou de 158.191 pessoas em dezembro de 2021, para 184.638 em maio.
*A reportagem usou um nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.
Fonte: RD News